quinta-feira, 31 de julho de 2008




"Sei que perdi tantas coisas que não podeira contá-las, e que essas perdas agora são o que é meu."




Jorge Luís Borges

Painas da roda d'água


Ana Graziela Cabral

Eram meados dos ventos de agosto, numa manhã em que, junto a papai, sai na velha Ford Rural azul e branca que tanta saudade me faz. Subimos a curva da poeirenta estradinha e seguimos o vôo dos papagaios até à vereda em que havia estragado novamente a roda d’água que mantinha os reservatórios do gado. No caminho, silêncio e só. Éramos ainda, papai e eu, dois imãs de polaridades iguais que, inconscientemente se repeliam. E nunca me doía tanto o silêncio como quando eu estava perto dele.
Chegamos e, menina que eu era, desci correndo, sonhando com os galhos da paineira que se debruçavam sob o curso d’água, mesmo sabendo que, com seu olhar castrador, papai não me permitiria subí-los. No fundo eu não me entristecia, por saber que isso era puro ciúme da parte de papai, receoso que o colo dos galhos da imensa árvore me pudesse agradar mais que o seu raro colo paterno.
Debrucei-me frente ao pequenino lago que se formava sob a queda das águas da roda e molhando-me da chuva de gotículas cristalinas, embriaguei-me com o estonteante cenário que se compunha a meu redor. Enquanto namorava as piabinhas que deslizavam no cristal da água, papai avisou-me com um gesto que subiria à nascente para retirar as folhas que se acumulavam e impediam o fluxo ligeiro da corrente.
Quando a sombra de papai subiu a colina, irradiou meu dia, e percebi finalmente que chegara a hora de crescer. Olhando para a água que aumentava a cada volta da roda, comecei a contar as pedrinhas coloridas que os raios de sol iluminavam no fundo límpido do poço. Mas, como um punhal que me feria as fibras, vi escorrer do rego d’água uma lama barrenta e viscosa que ocultou as pedrinhas que eu contava. Fora papai! Maculou novamente meu sorriso e me deixou apenas a frenética roda girando em meus pensamentos.
Ferida, senti que não poderia mais olhar a água como se saísse de minhas próprias veias o líquido que deslizava na roda. Fechei os olhos e, deitada na grama, ouvi as frias batidas das canaletas da máquina. Só então entendi que não somente eu sentia as dores do tempo, mas também tudo o que estava ali. Abrindo os olhos vi a roda de aço extraído aos rasgos dos veios da terra, e notei que seu rangido era o mesmo choro que o meu. A água impura que descia se lamentando trazia consigo as folhas e galhos de um outono intenso e, batendo nas canaletas de aço impulsionavam o choro da roda. Lama, folhas, galhos e roda me mostraram o quanto doía crescer.
Contorcendo a face de tristura, senti cair do rosto a lágrima que seguiu o caminho do lago. Sorrateira, a lágrima triste sorriu-me, refletindo meu rosto no espelho da água, que não mais estava turva. De espanto sorri ainda mais, ao ver uma chuva de painas que planavam e caiam sobre a minha vida. Olhando para o céu vi que papai estava nos galhos da paineira e, balançando-os, fazia as painas em peso cairem como fitas no chão. Com um aceno, dois, um de papai e um da árvore, chamaram-me para subir nos galhos que me fariam crescer. E naquele momento eu soube que tudo acabaria bem, e que, com o seu costumeiro silêncio, papai me dizia que eu sempre cresceria na direção dos galhos de neve da minha paineira.


Patos de Minas, 29 de setembro de 2007

"A ostra cria a pérola para distrair-se do mar.

O poeta cira a beleza para distrair-se do efêmero.

Só Deus cria a rosa para distraír-se do eterno".

Altino Caixeta de Castro


Uma fada surgiu essa noite


Ana Graziela Cabral

Uma fada veio voando nas costas das mãos da noite e apagou meu dia.
A fada planou suave na negra brisa do eterno e desapareceu no céu.
A mão que trazia a fada em suas costas se abriu,
Deixando cair uma lua cheia de prata na face da noite
Um anjo de finos cachinhos de ouro pendidos
Passou fugindo de medo dos risos do vento
E enquanto corria espalhava nos cantos do escuro
Gotas de estrelas luzentes caídas do olhar
Solene, se foi minha noite nos cantos dos galos
Efêmeras, secaram-se as estrelas dos olhos do anjo
Com os cantos dos galos nasceram os raios de sol
Que unidos subiram em prece para o meio do céu
Ninguém como eu soube ver o anjo a chorar
Tampouco vislumbrar os raios dos cantos dos galos
Pois só para mim uma fada surgiu essa noite
Matando no escuro o silêncio da dor que eu sentia
João Pinheiro, 13 de setembro de 2007.



"A estranhesa de um sonho pode ser tanta que nos parece que um outro sujeito vem sonhar por nós"




Gaston Bachelard