quinta-feira, 31 de julho de 2008

Painas da roda d'água


Ana Graziela Cabral

Eram meados dos ventos de agosto, numa manhã em que, junto a papai, sai na velha Ford Rural azul e branca que tanta saudade me faz. Subimos a curva da poeirenta estradinha e seguimos o vôo dos papagaios até à vereda em que havia estragado novamente a roda d’água que mantinha os reservatórios do gado. No caminho, silêncio e só. Éramos ainda, papai e eu, dois imãs de polaridades iguais que, inconscientemente se repeliam. E nunca me doía tanto o silêncio como quando eu estava perto dele.
Chegamos e, menina que eu era, desci correndo, sonhando com os galhos da paineira que se debruçavam sob o curso d’água, mesmo sabendo que, com seu olhar castrador, papai não me permitiria subí-los. No fundo eu não me entristecia, por saber que isso era puro ciúme da parte de papai, receoso que o colo dos galhos da imensa árvore me pudesse agradar mais que o seu raro colo paterno.
Debrucei-me frente ao pequenino lago que se formava sob a queda das águas da roda e molhando-me da chuva de gotículas cristalinas, embriaguei-me com o estonteante cenário que se compunha a meu redor. Enquanto namorava as piabinhas que deslizavam no cristal da água, papai avisou-me com um gesto que subiria à nascente para retirar as folhas que se acumulavam e impediam o fluxo ligeiro da corrente.
Quando a sombra de papai subiu a colina, irradiou meu dia, e percebi finalmente que chegara a hora de crescer. Olhando para a água que aumentava a cada volta da roda, comecei a contar as pedrinhas coloridas que os raios de sol iluminavam no fundo límpido do poço. Mas, como um punhal que me feria as fibras, vi escorrer do rego d’água uma lama barrenta e viscosa que ocultou as pedrinhas que eu contava. Fora papai! Maculou novamente meu sorriso e me deixou apenas a frenética roda girando em meus pensamentos.
Ferida, senti que não poderia mais olhar a água como se saísse de minhas próprias veias o líquido que deslizava na roda. Fechei os olhos e, deitada na grama, ouvi as frias batidas das canaletas da máquina. Só então entendi que não somente eu sentia as dores do tempo, mas também tudo o que estava ali. Abrindo os olhos vi a roda de aço extraído aos rasgos dos veios da terra, e notei que seu rangido era o mesmo choro que o meu. A água impura que descia se lamentando trazia consigo as folhas e galhos de um outono intenso e, batendo nas canaletas de aço impulsionavam o choro da roda. Lama, folhas, galhos e roda me mostraram o quanto doía crescer.
Contorcendo a face de tristura, senti cair do rosto a lágrima que seguiu o caminho do lago. Sorrateira, a lágrima triste sorriu-me, refletindo meu rosto no espelho da água, que não mais estava turva. De espanto sorri ainda mais, ao ver uma chuva de painas que planavam e caiam sobre a minha vida. Olhando para o céu vi que papai estava nos galhos da paineira e, balançando-os, fazia as painas em peso cairem como fitas no chão. Com um aceno, dois, um de papai e um da árvore, chamaram-me para subir nos galhos que me fariam crescer. E naquele momento eu soube que tudo acabaria bem, e que, com o seu costumeiro silêncio, papai me dizia que eu sempre cresceria na direção dos galhos de neve da minha paineira.


Patos de Minas, 29 de setembro de 2007

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