quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Moedas na calçada




Ana Graziela Cabral

As voltas do tempo fazem com que não mais existam certos lugarezinhos onde o povo e suas questões são as mesmas, onde ano após ano os bananais se curvam ao peso de seus cachos dourados, onde singelas cerquinhas de bambo rodeiam casebres como se os pudesse proteger de sua fragilidade. Ou quem sabe existam ainda e o que não haja mais seja o doce olhar que em outros tempos eu dirigia a eles.
Não sei! Apenas o que sei é que quando retorno ao Capivari Macedos encontro a casinha branca de portais azuis fechada, e o jardim à frente órfão dos roseirais que nos pareciam convidar a entrar. Quando paro em frente à casinha, deixo que meu pensamento entre e encontre na parede o retrato oval do casamento de vovô e vovó, retrato sério, como se o riso estivesse ainda por ser inventado.
Com medo de encontrar vovô recostado no velho sofá da sala, ávido por contar novo causo como sempre o fazia, o meu pensamento recua. Talvez não mais eu sirva para ouvir as histórias de antes que tanto bem me faziam. Pela fresta da janela da cozinha o pensamento sai ligeiro, atingindo o quintal e ali pareço ver ainda mais nítida a figura de vovô ao ralhar comigo enquanto eu, fascinada, tentava arrancar as antigas moedas que ele criativamente incrustara na calçada. Vovô não sabia do imenso desejo que eu tinha de levá-las comigo, ou talvez porque o soubesse, ralhava alto mandando que eu fosse brincar na praça da igreja, na verdade, a única do povoado, rodeada por suas cinco ou seis ruazinhas de terra batida.
Como eu fugia outrora também fugiu meu pensamento, escapando pelo portãozinho e subindo à direita a rua pedregosa, coberta de poços d’água de chuva recente. Fui andando bem devagarzinho e a certo ponto eu sabia que não mais queria subir. Sabia que, mais alguns passos, eu alcançaria o cemitério da Filosofia. Pensei, então, porque não poderia ele chamar-se cemitério da saudade, se é que se sente saudade do que sequer se conheceu.
Ao fim desse pensamento, notei que eu já havia transposto o portão e vendo os túmulos singelos (tais como o povo do lugar), levantei o olhar para mais uma vez contemplar a Flamboyant frondosa que sombreava o túmulo de vovó. Agora não pararia mais! Caminhei sentindo a terra fofa e úmida entrar em minhas sandálias até alcançar o túmulo. Estendendo a mão, arranquei a ponta de um galho de Flamboyant, que por ser outubro estendia gentilmente as rubras flores sobre o túmulo. Por algum tempo me demorei namorando o sangüíneo das flores da árvore e estranhamente senti ainda mais saudade da vovó. Ainda que ela tenha morrido antes mesmo do meu nascimento, as histórias que me foram contadas sobre sua singular bondade exerceram sempre um enorme fascínio sobre mim.
Afugentando as lembranças, me inclinei lentamente para colocar o galho da árvore sobre o túmulo e, em choque, recuei. Na lápide ao lado do nome de vovó, estava também o de vovô. Numa oração silenciosa tornei ao portão do cemitério da Filosofia. Chorei baixinho enquanto subia a alameda que levava ao fim do arraial. Agora eu sabia que não deveria nunca mais voltar. Descobri que não mais queria as tão cobiçadas moedas soldadas na calçada de vovô, pois ele não estaria mais lá para brigar comigo, enquanto moldava a palha entre os dedos tortos para arquitetar o costumeiro pito de palha. Talvez por isso não existam mais esses lugarezinhos em que o tempo não passa, porque a vida nos tira os motivos de voltar a eles.
Patos de Minas, 27 de outubro de 2007

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